terça-feira, 26 de julho de 2011

Eu Só Trabalho Aqui

             Desci do carro e caminhei lentamente pela rua escura. Eram onze da noite e os únicos movimentos na rua eram os meus e os das folhas movendo-se na dança do vento gélido. Parei em frente aos portões de grades verdes da casa vinte e cinco e toquei a campainha. Era uma casa não muito grande e não muito pequena. A coloração das grades indicava terem sido recém pintadas, assim como as paredes brancas da casa. A porta de madeira se abriu mais a frente e a luz incandescente da varanda se acendeu, revelando o morador. Um homem de feições fortes, trajando uma jaqueta de couro marrom, uma camisa branca por baixo e calças jeans. Ele cruzou os jardins até o portão e me cumprimentou enquanto abria o mesmo.
            - E ai Marcinho. Tudo tranqüilo?
            - Tudo de boa. - Respondi.
            - Entra ai que ta um frio do caralho.
            - Eu que sei.
            Avançamos pelos jardins e adentramos na casa. Bruno já era um cliente de longa data e eu até sabia alguma coisa da vida dele. O cara era um engenheiro, trabalhava com projetos de unidades petroquímicas. Devia ser legal. A situação financeira era boa. Nenhum luxo, mas o cara tinha bom gosto. O corredor de entrada terminava em uma sala espaçosa toda em preto e branco.
            - Guenta ai. - Falou disparando por um lance de escadas do outro lado da sala. Não demorou muito. Voltou se jogando sentado no braço do sofá e me indicando um lugar no sofá oposto.
            - Senta ai.
            - To tranqüilo. Não posso me demorar muito.
            - Saquei. Então, conseguiu a parada?
            - Sim.
            Encaminhei-me em direção a mesa que ficava entre a sala e a entrada da cozinha. Joguei o papelote branco sobre a escura mesa de mogno e tornei a colocar as mãos para dentro dos bolsos da jaqueta. Estava frio. Ele olhou firme para o pacote, analisando de longe, e retrucou:
            - Não foi isso que a gente combinou.
            - Foi o que deu pra arranjar. - Falei.
            - Não fode comigo Marcinho, tu sabe que isso ai não vai durar nem uma semana.
            Dei de ombros e repeti da mesma forma, como um gravador tocando a mesma faixa.
            - Foi o que deu pra arranjar.
            Ele respirou fundo, levantou-se do braço do sofá e cruzou a sala até a mesa onde deixei a droga. Pegou o papelote e ficou analisando a consistência através do plástico que a envolvia. Esses vagabundos sempre acham que estamos passando a perna neles. Largou o papelote e deu a volta na mesa, apoiando-se de costas na mesma. Cruzou as pernas e tirou um cigarro do bolso. Com um gesto rápido alcancei-lhe um isqueiro aceso. Ele deu uma tremida assustando-se de leve, mas aceitou o fogo. Sou bom com meus clientes. Fiquei ali, o observando tragar o cigarro e em seguida soltar a espessa fumaça em minha direção, com um sorriso de canto de boca. Odeio isso. Não tenho problemas com cigarro, mas isso é tática de vagabundo pra obstruir nossa visão quando querem fazer alguma merda.
            - Já falei pra não jogar isso em minha direção. - repreendi.
            - E eu tinha dito que queria um quilo da parada.
            - Foi o que deu pra arranjar. - Repeti. Sabia que ia ficar puto.
            - Você só sabe repetir essa merda?
            - Eu só trabalho aqui.
            - É a terceira vez que tu me faz isso.
            - E é a terceira vez que te falo que com o valor que tu me disse, é o que dá pra arrumar. Desde que começou essa ocupação da polícia os caras querem a parte deles pra liberar o bagulho. O preço subiu.
            - Percebi. Mas achei que era por causa da alta do dólar. - ele riu sarcástico. Eu não.
            - O dólar está em baixa...
            Ele tragou mais uma vez o cigarro, mas dessa vez jogou a fumaça para o alto. Deu a volta na mesa de novo olhando pro pacote.
            - Quanto tem ai?
            - Setecentas gramas.
            - Setecentos.
            - Isso que eu disse.
            - Você disse setecentas. O Correto é setecentos. No masculino. Não tem mato nessa porra.
            - Que se foda.
            - Que houve cara? Está um puta ranzinza hoje. A Mulher dormiu de calça?
            - Só quero resolver logo isso, ainda tenho mais gente pra visitar.
            - Bebida?
            - Não, obrigado.
            Ele foi em direção à cozinha, e ficou falando de lá.
            - Sabe o que é Marcinho, essa parada nem é pra mim. Uns parceiros me pediram pra arrumar, e eu falei que conseguia um quilo com o que me deram. Se eu aparecer com setecentos vão achar que eu to passando a perna neles.
            - Não vão não. São teus parceiros, conta pra eles o que te contei.
            - Até parece que não conhece vagabundo, né cara? - disse voltando da cozinha com um copo de Uísque na mão. Pela cara já tinha virado um por lá mesmo. - Quebra essa pra mim mano, to te arrumando novos clientes.
            - Não vai dar. Os caras tão esperando o arrego e eu não tenho do meu pra tirar. Se tivesse me contado essa história antes eu mandava o papo nos caras.
            Ele tomou mais um gole, olhou pro fundo do copo, e finalizou a bebida. Largou o copo sobre a mesa e deu mais uma tragada, mantendo o cigarro na boca com os lábios. Enfiou a mão no bolso da calça e tirou um maço de notas. Em seguida contou as mesmas de maneira que não pude ver e largou sobre a mesa, do lado do pacote.
            - Ta ai cara.
            Aproximei-me da mesa, peguei o maço e iniciei a contagem, observando o bastardo com a visão periférica. Tinha menos. Por que diabos não podia ser uma noite tranqüila de negócios? Olhei pra ele cerrando os olhos.
            - Porra é essa?
            - Vamos fazer assim cara, nem pra mim nem pra você. Eu devolvo uma parte pros caras e digo a parada do arrego, fica mais fácil de acreditarem.
            - Já disse que não rola.
            Larguei o maço sobre a mesa novamente e estendi a mão para pegar o pacote de volta. O chato da bebida é isso. O cara bebe, fica se achando senhor do mundo, e perde a noção das coisas. Ele alcançou meu braço, me segurando pelo pulso na tentativa de deter minha mão e começou a dizer alguma coisa. Não quis saber. Num movimento rápido acertei-lhe um soco de esquerda na têmpora, que abriu imediatamente. Dei a brecha pra que processasse a informação que meu soco carregava, de que eu não estava pra brincadeira, mas o patife achou melhor revidar. Puxou meu braço me fazendo bater na mesa na tentativa de me desequilibrar. Erro meu. Erro dele. Repeti o golpe de esquerda e ele ficou atordoado, largando meu pulso e cambaleando pra trás.
            - Seu filho da puta! - Esbravejei.
            Parti pra cima dele dando a volta na mesa. Ele tentou me acertar com a direita mas eu consegui evitar o soco. O bom da bebida é isso. Eles sempre ficam mais lentos. Segurei o braço dele antes que ele o retraísse e puxei-o na minha direção, elevando meu joelho na altura de seu estômago. Queria poder tirar uma foto cada vez que isso acontece. Eles abaixam tentando proteger a barriga enquanto os olhos esbugalham e a boca se contorce. O sangue se concentra na face, deixando-a avermelhada e as veias saltam do pescoço e da testa, dando o toque final na careta. A cena se completa com o grunhido rouco procurando o ar perdido. Se bem que o grunhido não sairia na foto... Bem, podia ser um vídeo, sem o grunhido, não tem graça. Segurei-o pela lapela da jaqueta e o arremessei sobre a mesa de centro da sala. O vidro se quebrou e o som agudo preencheu a sala, sendo seguido pelo silêncio. Caminhei em direção à mesa onde estava a droga e o dinheiro. Peguei a droga e fui saindo. Vi o cara se arrastando na sala, mas não dei bola. Já perto do corredor de saída escutei o já conhecido clique e me detive. O filho da puta apontava um revolver para mim. É assim agora. Você vai, viola não sei quantas leis pra poder ganhar um trocado, enquanto esses babacas só querem saber de cheirar. Ao invés de me agradecer o cara me aponta uma arma. Eu já estava ficando de saco cheio daquilo. Virei-me pro cara que empunhava o revólver com a mão esquerda enquanto verificava o sangramento na têmpora direita. A arma tremia e eu sabia que, se atirasse, ele erraria.
            - Porra Marcinho! Achei que a gente fosse parceiro!
            - Eu só trabalho aqui. Enquanto estou te vendendo essa porra aqui eu sou um negociante. É meu rabo que fica na reta lá no morro se eu não aparecer com a grana. Daí você não quer me pagar, eu não quero vender, é simples assim. Agora você me aponta uma arma e eu te pergunto, vai fazer o que?
            - Deixa essa porra ai, pega a grana e mete o pé. Amanhã eu te ligo, a gente marca e eu te dou o resto. A situação é complicada, eu to devendo essa porra pruns caras e o meu ta na reta. Eu sei que tu consegue driblar os caras até amanhã.
            Nesse ramo é assim. Tanto a gente quanto os vagabundos, ninguém tem amigos, são todos conhecidos. Na hora que a coisa aperta cada um só pensa no seu. Eu podia sim segurar as pontas com os homens. Podia ajudar o cara, afinal, é meu cliente há anos. Mas de repente eu não senti firmeza nele, e se tem uma coisa que a gente aprende cedo, é não confiar em viciado. Primeiro a gente tenta manter uma relação de respeito. Pra gente que negocia com os marmanjos da classe média, é mais vantajoso fazer isso do que aplicar a política do medo. A gente ganha mais. Mas quando a situação chega ao ponto em que essa chegou, não tem mais jeito.
            - Tu vacilou Brunão. E feio. Agora eu vou te dizer o que vai acontecer. Ou eu saio daqui com o dinheiro todo, ou saio com a parada. Você pode puxar o gatilho se quiser, mas é bom você acertar, e se acertar, é bom correr e cheirar tudo que puder, por que os caras lá fora vão garantir que seja a última coisa que você vai cheirar. Se você tinha um problema, você me procurava, e não me aprontava uma dessas.
            - Puta merda! É situação de vida ou morte cara, tu tem que me ajudar.
            - Agora tu pede minha ajuda?! Primeiro tenta dar uma de espertinho, depois aponta um caralho de um trabuco pra mim, e agora pede minha ajuda?
            - Foi mau cara, eu to com o cu na mão. Ok, sem armas. Sem exaltação.
            Ele abaixou o revolver e largou no sofá, andando em direção a mesa. E fazendo caretas enquanto tentava parar o sangramento na têmpora. Deu pena do sujeito, resolvi tentar ajudar o cara.
            - Quem são os caras? - Perguntei.
            - Uns caras lá da Lapa.
            - Isso não ajuda muito. A Lapa é área de livre comércio. Pode até ser dos nossos.
            - Não era não. Pelo que eu entendi tão ligados com um tal de Valter Negrão. Não sei se é sério ou se era balela. Me lembrei daquele ator.
            - É um trocadilho mesmo, mas esse é negrão de verdade. É do Macaco.
            - E ai? Qual vai ser?
            - Seguinte. Tu me dá a grana, por que eu dependo dela pra desenrolar com os homens. Vou usar o valor pra negociar os outros trezentos e vou contigo falar com os caras.
            - Acha que vai dar certo?
            - E quando foi que não deu certo comigo Brunão? - Disse abrindo os braços e fingindo um sorriso amistoso. Ele cuspiu um sorriso e pegou o resto da grana, colocando as notas junto das que estavam na mesa. Aproximei-me e depositei a droga sobre a mesa novamente. Em seguida peguei o dinheiro e fiz a contagem. Dessa vez estava certo. Dobrei o maço e guardei no bolso traseiro da calça.
            - Então fica combinado assim? Por favor cara, me ajuda nessa que eu fico te devendo uma.
            - Xácomigo.
            - Então, sem ressentimentos? - Ele disse me estendendo a mão direita.
            - Sem ressentimentos. - Respondi.
            Sem ressentimentos era o caralho. Completei o aperto de mão puxando-o novamente, passando para trás dele e torcendo seu braço em uma chave de braço. Chutei a lateral de seu joelho direito, levando-o ao chão em meio a um urro de dor. Não sei se quebrou, ou se torceu. Nem ligo. Passei o braço esquerdo em torno de seu pescoço, puxando seu corpo contra o meu, sufocando-o em uma gravata. Ele tremia buscando ar. Soltei o braço direito e busquei a pistola que ficava presa a minha cintura entre a calça e a cueca. Tirei a trava e passei o braço pra frente apontando a pistola para seu nariz, tocando-o com a superfície fria do cano.
            - Mas se apontar uma arma pra mim de novo, te garanto esse cano vai ser a última coisa que você vai cheirar. E vai ser a maior viajem. Sem volta é claro. Entendido?
            Afrouxei um pouco o aperto no pescoço e ele maneou a cabeça positivamente. Larguei o corpo pesado no chão e me mandei. Lá fora acendi um cigarro e me dirigi ao Honda Civic preto estacionado na esquina ao fim da rua. Parei ao lado da porta do carona e as luzes se acenderam. Dei uma última tragada e joguei o cigarro fora. Não fumo dentro do carro. Entrei e depositei a arma sobre o porta luvas.
            - E ai, foi tranqüilo?
            - Tudo certo Miltão. Vamo nessa. - Dei uma olhada no relógio enquanto o carro entrava em movimento.
            - Quem é o próximo? - Perguntei.
            - Laércio. Lá no Leblon.
            - To ligado. Quanto ele pediu dessa vez?
            - Um e meio.
            - Esses caras só pioram.
            Abri o porta luvas do carro e chequei o estoque. Três quilos. Separei dois pacotes de meio quilo e um outro menor.
            - Pena que só deu pra arrumar um e duzentos. - Falei sorrindo e olhando para o Miltão, que me devolveu o olhar.
            - Você é mesmo um filho da puta - Me disse sorrindo.
            - Que nada Miltão. Eu só trabalho aqui.
Explodimos em uma gargalhada enquanto o carro avançava noite adentro rumo ao Leblon.

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