terça-feira, 19 de julho de 2011

Rotina

Dia estranho. Sensação ruim. Sabe aquela sensação ruim que você sente quando percebe que pode controlar o ritmo de sua respiração? Ou quando percebe que sua língua não fica confortável em sua boca? Ah, me desculpe por isso. Eu caí nessa também. Logo a gente esquece. Mas o que importa é a sensação de estranheza, não sei o que é. Parece que percebi minha presença no mundo assim como percebi minha língua na boca, e fiquei desconfortável. De alguma forma parece que está tudo errado.
            Acordei tarde hoje. O sol já enviava seus raios luminosos para dentro do meu quarto, atravessando a falha na cortina e sarcasticamente buscando meus olhos indefesos. Arrastei-me pela cama até a beirada, e estendi o braço apenas para corrigir a falha na cortina e colocar o quebra sol de volta no lugar de onde nunca deveria ter saído. Tic-toc, 07h30min. Os ponteiros avançam impiedosamente, levando com eles o tempo que me resta, como a carretilha de um anzol. A linha esticada é o tempo. De um lado, do meu lado, estou eu, preso à ponta. Do outro, um desconhecido enrola, incessantemente, a linha de volta. Quando ele terminar, serei apenas mais um peixe fora da água, retirado do meu mundo e afastado de tudo que conheci, para provavelmente não conhecer mais nada. Na melhor das hipóteses serei comido assado. Mas ainda me resta muito tempo, ou pelo menos assim espero. Por isso não tenho pressa. Tic-toc, 07h40minh. Levanto-me da cama e me ponho em movimento. Essa coisa toda é como um parque de diversões. Você chega, e encontra velhos sorridentes ao lado de um brinquedo chamado "Rotina". Você se senta no carrinho que segue por trilhos, passando por altos e baixos até chegar ao final. É divertido. Você volta no dia seguinte, no outro, e no próximo, e depois... o brinquedo perde a graça. Existem centenas de outros brinquedos no parque, mas você nunca se utilizou dos mesmos. Tem medo deles. Tem medo de sair do seguro e conhecido "Rotina". Às vezes o trilho muda de linha. Fica divertido de novo. Trajeto novo, coisas novas, surpresas novas. Mas é só às vezes, e cedo ou tarde você acaba retornando para a linha antiga. Às vezes também alguém se habilita a sentar com você no seu carrinho e você tem alguém com quem compartilhar suas emoções. Mas cada um tem seu próprio carrinho, seu próprio trajeto no "Rotina", e elas acabam voltando para seus próprios acentos. É triste. Tic-toc. Enrola a linha. Tic-toc, 08h00min.
                Na rua todos têm pressa. Um motoqueiro passa cortando um carro em alta velocidade, quase bate. Um homem bem vestido, terno cinza, sapatos pretos, carrega uma mala também preta, abandona a elegância e corre para pegar um taxi. Uma mulher negra anda rápido na direção contrária a minha. Podia ser uma bela mulher, olhos verdes delineados, pele lisa. Um sorriso bonito apesar de um tanto quanto amarelado. Mas ela tem a barriga estufada, não sei se está grávida ou se são vermes. Na mão esquerda um maço de jornais - provavelmente não são de hoje - e na direita um copo descartável de café com leite. Os cabelos crespos jogados para cima, presos com um velho arco, sem o menor compromisso com a beleza. Ela não tem isso. Ela tem pressa. Anda descalça, esfolando os pés no asfalto rumo a seu destino misterioso. Pedestres apressados atravessam sinais vermelhos. Um motorista apressado atropela um carteiro também apressado montado em uma bicicleta. As cartas voam da bolsa do carteiro caindo com lentidão, retidas pela resistência do ar. Os destinatários das cartas tem pressa para recebê-las, mas vão ter que esperar. Enquanto isso, nas avenidas, milhares de carros apressados enfrentam a lentidão do trânsito que eles mesmos causam. As pessoas são burras. Transformam soluções em problemas. Colocam-se na correnteza que leva diretamente ao desconhecido do anzol, facilitando seu trabalho. Ele ri. Ri enquanto perdemos tempo na rotina, ri enquanto nadamos em sua direção, e rirá mais ainda quando nos debatermos no fim da linha.
                Tic-Toc. Obrigado senhor, volte sempre. Tic-Toc. Só mais um dia no "Rotina".

2 comentários:

  1. Sensacional, rapaz. Um de seus melhores.

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  2. Vim dar uma olhada no blog por indicação do Caio e me deparei com esse texto. Ficou espetacular! A metáfora para a rotina e principalmente a do tempo. Parabéns.

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